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Das ciências humanas ao mundo das ciências exatas
A bicicleta Mercswiss, aro vinte e quatro, azul e linda, é a companheira inseparável de Felipe. Ele se apaixona à primeira vista, quando a desembrulham, e amansa aquela belezura, dando garupa para um amigo do bairro. Ao apontar a bicicleta para a íngreme Rua da Escadinha, o carona tenta pular fora, em vão. Eles disparam descida abaixo, sem controle dos freios, e milagrosamente fazem a curva, escapando de confrontar o imenso Chafariz da Matriz do Pilar.
— Bem que minha mãe fala que você é maluco, Felipe! Quase mata a gente, cacete! Olha meus cadernos espalhados. Minha mãe vai me matar.
Felipe ri.
— Junta lá e monta aí.
— Monto nada, seu bosta, vou a pé.
A bicicleta não tem marchas, apenas a catraca seca, estragada pelo esforço excessivo, estralando e pulando dentes, tentando girar a frágil roda para vencer as ladeiras íngremes da cidade.
A perna de Felipe é marcada pelo pedal que gira solto e escapa, quando a catraca pula os dentes na grimalheira, saindo das travas, batendo o pedal com violência bem no osso da frente da canela. É uma dor de “tirar a alma do corpo”. Ele senta em qualquer lugar que esteja, rola no chão, espreme-se de dor e xinga um vocabulário inteiro de palavrões. Ao chegar em casa, a telinha quadriculada do pequeno pincel duro do mertiolate vai em seguida levar a alma do moleque de uma vez por todas, de tanta ardência causada pelo medicamento.
Ouro Preto não tem casas especializadas que vendam uma catraca de bicicleta. Felipe ouve falar que próximo à Usina de Saramenha tem uma lojinha que comercializa peças. Monta na bicicleta falhando a catraca, vai pedalando como pode. A estrada sinuosa é perigosíssima, com precipícios muito altos e espaço restrito para passar os veículos, entretanto, vale o risco, na esperança de encontrar a desejada peça. Lamentavelmente, após a odisseia na estrada, frustra-se por não encontrar a desejada catraca. Isso depois de ter pedalado morro acima, correndo o risco de ser atropelado pelos caminhões de minério, pilotados por seus motoristas tresloucados.
Na volta, resolve pegar uma carona. Ficar no meio do caminho com a “aranha azul” estragada seria caótico. Joga a bicicleta sobre um caminhão que carrega gaiolas empilhadas, cheias de galinhas. Só percebe que estão mal amarradas quando o caminhão dobra a Curva do Vento, despencando de sua carroceria dezenas de gaiolas e a sua querida bicicleta.
Felipe se agarra como pode na travessa frontal da carroceria. Por sorte, não vai junto com parte da carga centenas de metros abaixo, até estatelar na estrada de ferro. Aquele é o triste fim da bicicleta azul, o seu único e precioso bem. Ainda vê que a bicicleta está inteira sobre os trilhos, porém, inacessível para ser recuperada, antes que alguma composição carregada de minério passe pelo trecho, fazendo dela mil pedaços. Foi um presente do tio, seu padrinho, tornando-se um dilema explicar a ausência da bicicleta. Se não foi catada por alguém, o trem deve selar o destino dela.
Um dia rola a noite, que empurra o outro dia e a vida continua, com ou sem bicicleta. Ele dá a desculpa de que a deixou para consertar. Depois vai ver uma maneira de gerenciar esse conflito.
— Você mentiu para sua mãe? — pergunta o amigo Vicente.
— Mentirinha de nada! Não afeta ninguém, a bicicleta era minha.
— Foi um presente do seu padrinho. — insiste Vicente, a fim de convencer o amigo que ele falhou.
— Vicente! Acorda! Queria que eu fosse atrás dela, voando até lá embaixo?
— Vai ter que dar satisfação para sua mãe.
— Tá bom! Vou te perguntar uma coisa, Vicente. Me responde antes, aí eu conto pra ela sobre a bicicleta.
— Pergunta, então!
— Cadê aquelas revistas que te dei? Mais de quinze. Tinha revista até do Fantasma.
— Estão lá em casa. — responde o amigo Vicente, olhando para os lados.
— Mentira, seu Pinóquio de uma figa! Você trocou com o Sá Onça, que eu sei.
— Ué, Felipe! Você me deu, eu li e troquei.
— Mas, mentiu “mentirinha de nada que eu falo”. Deu porque eram suas. Então para de encher o saco!
Todas as vezes que Felipe está para chegar em casa, permanece lá por baixo na rua, dá uma espiada no sobrado do Senhor Hans. Ás vezes se arrisca, subindo nas rebarbas da base das paredes do sobrado do Senhor Hans, conseguindo olhar através dos vidros da janela: “É um luxo só!”, admira-se quem conhece a sala de estar do misterioso solar.
— Mãe, chegou gente na casa vazia. Vi pela janela. São ricos! — diz Felipe à sua mãe, dona Concessa, olhando pela veneziana, assim que se levanta.
— E daí, menino? Vá se arrumar para a escola ao invés de bisbilhotar a vida dos outros.
— Parece gente igual aos bandidos metralhados pelo Dick Tracy.
— Quem é esse? Da delegacia? — pergunta a mãe.
— Da revista, mãe, da revista.
— Onde você arranja dinheiro para comprar revista, moleque? Na gaveta da minha cômoda?
— Não, já parei mãe. Juro!
— Foi a cinta no lombo que te fez parar.
— Deixa eu ver essa revista. — a mãe pega a revista numa passada de mão.
— Aqui, ó... olha o bandido que o Dick mata. — ele mostra o quadrinho do Dick Tracy metralhando os mafiosos dentro de um carro Citroen preto.
Ela verifica na capa “maiores de 18 anos!” Dona Concessa pega a revista, faz picadinho e joga no lixo, sob o desespero de Felipe.
A cidade pulsa com um ritmo próprio, uma mistura de tradição e do estigma do atraso contínuo desde quando perdeu o título de capital. As ruas antigas, calçadas de pedras, falam de um passado ainda vivo nas memórias dos mais velhos, enquanto os sinais de modernidade ainda se fazem longe das vistas dos habitantes. Em meio a essa mescla de gerações, o bairro mais icônico da cidade se destaca por sua tranquilidade, um refúgio para aqueles que buscam paz e quietude — o bairro do Rosário.
As moradias, a maioria sobrados coloniais acolhedores, com suas frentes pitorescas, muitas delas avarandadas, parecem convidar ao descanso e à reflexão. Não há muitos comércios, mas os poucos que existem, a padaria perto da ponte, o armazém no térreo do Solar do Rosário, a sapataria ao lado da casa do Hugo, são suficientes para as necessidades diárias e mantêm o bairro vivo. Se você estiver doente, basta chamar Doutor Percival que ele vai até sua casa e te acode.
Nas roupas penduradas para secar ao sol, às vezes nos guarda-corpos das varandas, vê-se a simplicidade do cotidiano.
— Olha lá, Vicente! Aquele é o lençol do Sá-onça. — observa Felipe.
Sá-onça, é o apelido do amigo, também adolescente, que faz xixi na cama. O lençol pode ficar quarado no sol o tempo que for que não desamarelava.
À tarde, as ruas ganham vida com as crianças brincando e os vizinhos conversando em grupos pequenos em frente às suas casas.
“Que manchas roxas são estas nas suas costas?”, pergunta a mãe de algum menino, que aparece em casa com as costas vergadas de marcas vermelhas, às vezes com a pele esfolada e hematomas por toda parte posterior do corpo.
É uma brincadeira conhecida por “tico-tico fuzilado”, de extrema violência, que consiste em uma bola feita com meia recheada de panos e cacos de telha. O jogo se dá cavando uma fileira de pequenos buracos no chão, da profundidade para caber a bola de meia, sendo cada um dos buracos representando um adolescente que está no jogo. Para jogar todos se posicionam a três metros da fileira de buracos e um a um, tentam acertar os buracos no chão, rolando a bola até cair em um deles. Quando a bola cai no buraco referente a um determinado jogador, ele corre para pegar a bola e tentar acertar nos outros que correm para longe. Aquele, no qual ele acerta a bola, o pobre vai para o temido “paredão de fuzilamento” onde se encosta com a face para a parede, e todos os outros o fuzilam com a bola cheia de cacos de telha, deixando marcas doloridas. No caso daquele que está de posse da bola quando ela cai no buraco, se errar o adversário que corre, ele próprio vai para o paredão de fuzilamento. “Caso de polícia!”, reclama Dona Lili, proprietária de uma escola de comércio, já que todo fuzilamento se dá bem às vistas das janelas da sua escola.
Este bairro também é lar de esparsos imigrantes europeus, que chegaram após a guerra terminada em 1945 e até antes, carregando suas histórias e tradições. Eles se misturam aos locais, criando uma salada cultural. Suas casas, um pouco diferentes das demais, apenas pela escolha das cores, com matizes pastéis, que lembram seus países de origem, acrescentam uma nova camada à identidade do bairro. Neste cenário de calmaria e diversidade cultural, um casal de idosos, na casa dos seus sessenta e cinco anos, escolhe silenciosamente se estabelecer. Eles se mudam na calada da noite, evitando atrair a atenção dos vizinhos, para um sobrado portentoso, escondido pela curva da Rua de Cima, parte do logradouro mais afastado, próximo a uma campina.
— Shirley, passa correndo em frente essa casa. — avisa Felipe à sua amiguinha Shirley, filha de um operário batalhador da usina Saramenha, mostrando a casa para onde se mudou o casal de idosos.
— E se eu não quiser correr?
— Você quem sabe. Eles têm um caldeirão na cozinha para cozinhar meninas da sua idade. Vão cozinhar você e a sua irmãzinha. — era o argumento de Felipe para que as duas se mantenham afastadas.
Por mais que os novos vizinhos procurem ser discretos, a mínima movimentação na casa não passa despercebida pelo garoto Felipe. Da janela do seu quarto, ele tem visão privilegiada do bairro e vem observando o casal desde que chegam, acumulando imagens esparsas, que vão se fundindo em uma história criada em sua mente.
— Gente idosa, mudando? — pergunta a si com tom de indignação. Depois comenta com a mãe se ela conhece algum casal de velhos que tenha se mudado; ela responde negativamente.
— Toma conta de sua vida, menino! Você vê coisas onde elas não existem.
Em Ouro Preto, nesse bairro tranquilo, cada habitante traz consigo uma história a ser misturada na comunidade, unida pela simplicidade e pelo desejo comum de viver em paz, longe do barulho e da agitação da cidade grande.
Um dos seus melhores amigos é mesmo o Vicente, filho de uma família de afrodescendentes, cuja mãe é uma talentosa professora de violão.
— Vicente, mudou gente esquisita pra casa vazia. Gente vestida igual aos bandidos do Dick Tracy. — comenta Felipe ao amigo.
— Vieram matar alguém, será? — Vicente, navegando na fantasia, aumenta o suspense.
— Pode ser... mas, quem será o morto?
— Sei lá... será que estão atrás dos Moscovis? Ou da família do Zé Babi, só pode.
A conversa vai longe e ganha as pernas compridas da imaginação. Sem chegar a uma conclusão, vão até o solar dos Ferreti. Assobiam em código para o destinatário Roger, um pouco mais velho que os dois, filho exemplar, centrado, responsável, que ajuda o pai na relojoaria.
— Felipe, eu te dei aquela coleção de revistas, para você ler, seu capiau! Nada lá existe, seu tolo. — retruca Ferreti depois de repreender os dois amigos.
— Eles estão morando bem em frente à sua casa, Roger. Cuidado!
— Cuidado uma ova, moleques! Vão caçar o que fazer.
Felipe conhece todas as “passagens secretas” que existem entre as casas, sendo uma delas, subterrânea no bairro. Facilmente ele transita de um sótão a outro nas casas geminadas da rua. É aquele tipo de bairro fervilhado de moleques que tiram o sossego dos seus pais.
— Uma hora dessa alguém te pega no sótão, faz um barulho sem noção quando pisa nas tábuas do teto. — avisa o amigo Sá-onça que escuta Felipe cruzando o sótão de sua casa.
— Acham que são gambás. — Felipe ri.
— Gambá meio grande. Você sabe que o Manoel encanador caça gambás, mata, frita e come?
— Meu pai falou.
—
Uma hora dessas, você encontra com ele no escuro, em um sótão, e ele te passa fogo.
— Vira essa boca pra lá.
— Vou falar pro pai da Gilmara que você vai no sótão do banheiro deles, e vê pela fresta ela tomando banho.
— Fala! Pode falar. Você foi comigo um dia.
— Eu? Nunca fui!
— Mas eu falo que foi comigo. É só me dedurar que te levo junto.
O bairro tem vários nichos: o das crianças, que brincam nas ruas, no antigo casarão abandonado do Solar do Rosário, nos adros e na Igreja do Rosário; nicho dos músicos, na sede da banda comandada pelo maestro Marzano; dos adultos, do Tabajaras Futebol Clube; das meninas, que se reúnem no casarão da menina Hellen; das beatas, na sacristia da Igreja do Rosário; e dos foliões do Zé Pereira, na garagem da casa do Padre Simon. Tinha outro pessoal também, que era um pé no saco; o pessoal da TFP – Tradição, Família e Propriedade, que quer, porque quer, arrebanhar a meninada para o fanatismo.
Na Rua de Cima, que se eleva majestosamente acima das demais, a vida flui com um encanto singular. As residências de pedra e as calçadas de pedras chatas, entremeadas com grama, desenham um cenário que parece saído de um conto de fadas. Os gatos da Dona Jandira nas janelas parecem bibelôs, disputando os olhares com as floreiras da casa de Dona Anita, os jardins da Dona Zizinha e o cheiro de tinta fresca no papel, emanado da tipografia do Senhor Ademar.
No coração desse cenário, destaca-se o lar da família de Felipe, uma casa colonial cujo alpendre é embelezado por azulejos hidráulicos, um legado da Igreja Nossa Senhora do Rosário. As histórias desses azulejos são frequentemente narradas por Mário, o dedicado zelador da igreja, revelando o gesto generoso do antigo vigário, quando ele assenta os azulejos da Igreja do Rosário, sobrando um pouco e ele os colocando no alpendre da Casa Paroquial, que é o mesmo sobrado onde mora Felipe, isso há tempos.
Neste microcosmo, onde convivem pessoas simples, intelectuais e artistas, não é raro testemunhar a visita de personalidades ilustres como Jean-Paul Sartre e os pintores Guinard e Takaoka. Essa riqueza multicultural traz um colorido único ao cotidiano dos moradores, infundindo o ambiente com sofisticação e criatividade.
Em um dia particularmente chuvoso, a serenidade da rua é quebrada pela chegada de um Ford Station Wagon 47. Bolinha, o fiel cão de Dona Lili, que come maçãs, late vigorosamente para o veículo, capturando a atenção de todos. Os vizinhos, movidos pela curiosidade, espiam pelas janelas. Roger Ferreti, o filho do relojoeiro Jeff Ferreti, anuncia com um misto de surpresa e orgulho a chegada de seu pai no automóvel reluzente. A vizinhança se aglomera para ver a novidade, com a presença até de Cristiane, a jovem que rouba os corações dos rapazes locais, inacessível a eles, míseros adolescentes.
A pacata Rua de Cima, normalmente dominada pelo lento desfile dos burros de carga de Senhor Arlindo, o tropeiro, começa a se transformar com a chegada de mais automóveis. Logo após o Ford da família Ferreti, o professor Vicenzo Lody aparece com sua Rural Willys, introduzindo uma nova dinâmica à rua. Veículos como o Aero Willys de Domiciano e o Jeep do correspondente de guerra, Senhor Abel, adicionam um ar de modernidade ao local.
Entre os jovens, Roger Ferreti se sobressai como um inventor nato, autodidata. Em sua oficina, ele dá vida a inúmeras invenções, inspirado pelos avanços da NASA. Sua paixão pelo xadrez e pela construção de aeromodelos contamina Felipe, que para seguir os passos do amigo, precisa de dinheiro, passando a vender desenhos a turistas, angariando fundos para seus próprios projetos, incluindo foguetes que teimam em não decolar.
— Este vai dar certo! — diz Felipe ao amigo Vicente.
— Eu acho que você encheu o cano com muita pólvora.
Depois de fazer um caminho de pólvora até o foguete improvisado, tocam fogo no pavio, que queima até o foguete explodir em mil pedaços.
O Bairro do Rosário em Ouro Preto é um lugar único. Moram ali astrônomos, artistas, inventores, imigrantes, fantasmas, fugitivos e pessoas comuns. Na década anterior, lançaram o primeiro satélite. Von Braun está desenvolvendo o foguete Saturno V, que levará o homem à lua. Entretanto, antes disso, a Rússia envia o primeiro homem ao espaço, e os Estados Unidos, um mês depois. Assim, aceleram a corrida espacial, acentuando a disputa conhecida por “Guerra Fria”. Isso reflete no Bairro do Rosário, especialmente na família Ferreti, que possui uma ampla oficina nos porões do solar onde moram, com muitos recursos disponíveis.
Roger é um gênio inventivo, que procura realizar miniaturas de foguetes, que começam simples e gradualmente se tornam sofisticados. Subiam a pouca altura, mas possuem estágios que se separam em módulos e, no último estágio, uma cápsula desce suavemente em um paraquedas.
Felipe, que não possui recursos, nem dinheiro e nem mesmo um laboratório, constrói foguetes usando cabos de guarda-chuvas, aletas feitas de lâminas de metal obtidas de tampas de latas de goiabada, e pólvora de fogos de artifício, que, depois de desmontados, fornecem o preciso combustível. Roger tem a fórmula de como produzir pólvora e a faz com maestria, embora não revele nada.
A Rua de Cima, então, testemunha uma fase de transição, marcada pela chegada desses veículos e pelas crianças que aprendem a se proteger nas calçadas. Os moradores, sempre adaptáveis, começam a usar assobios para sinalizar eventos ou perigos. A oficina dos Ferreti, repleta de ferramentas e ideias, torna-se um laboratório de criatividade, onde as habilidades de Roger, incluindo suas acrobacias de bicicleta, inspiram Felipe, fortalecendo uma amizade que se prova inestimável.
Essa rua, com suas peculiaridades e seus personagens vibrantes, não apenas abriga as memórias de Felipe, mas também molda seu caráter e sua percepção de mundo, tornando-se um cenário inesquecível em sua jornada de vida. A intriga com a chegada dos novos vizinhos torna-se parte do seu dia a dia investigativo.
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