Sempre que o vento estava a favor era possível escutar as badaladas do sino do relógio do Museu da Inconfidência. Foram cinco. Acordei cedo, mas não ao ponto de pegar meus pais dormindo. Já estavam de pé. Geralmente sou acordado pelas balançadas e os safanões da minha mãe, sempre atrasado para aula. Mas, é f'érias , e hoje vamos para o Morro do Gabriel. Não consigo e nunca procurei entender a relação da fazenda com o serviço do meu pai que trabalhava com mineração. Isso nunca importou! Me transcendo para um daqueles dias.
Que diabos vem este pensamento na minha cabeça a esta hora? Olhei com desprezo total para o uniforme do Colégio Arquidiocesano, de cor caqui, com feitio horroroso, grosso, pesado, que se fizesse chuva ou sol éramos obrigados a vesti-lo sempre. Mas nada me aborrece hoje. Ficarei longe dele um mês. Que alívio! Entretanto, se meu uniforme pudesse falar ou reclamar de mim, faria isso com muita competência, pois eu judiava dele. Livre deste terno de colégio, a única coisa que continua me atormentando é o sapato da marca Verlon, de borracha, que cozinha os pés de tão quente. Ou congela de friagem conforme o dia.
A fazenda fica a trinta e cinco quilômetros de Ouro Preto, percorridos por trem até a estação de Hargreaves. De lá até a sede é uma tirada a pé de três quilômetros, que nem fazem cócegas em nossas panturrilhas de adolescentes, acostumadas nas ladeiras de Ouro Preto. "Gente, o trem sai as sete! Muda passo!" - meu pai repete a todo momento. É mês de julho e durante noite são necessários dois cobertores de lã, além do pijama bem grosso. As venezianas estão entoando o assovio das casas assombradas, levanto arrastando a preguiça, olho pelas frestas. A neblina deixa ver apenas alguns metros, mas posso perceber que o calçamento está orvalhado. A grama esparsa entre as pedras do calçamento estão branquinhas, cobertas pela geada. Veneziana cantando é sinal de vento, que combinado com o frio judia da pele. Mas isso não importa! Hoje não tenho a obrigação terrível de ir para o colégio. Estou livre das aulas de história ministradas pelo carrancudo Padre Carmélio, a matemática complicada do professor Benedito Xavier, que joga o giz na gente se estamos cochilando. A certeza de não ser atormentado pelo carimbo de compareceu ou faltou na minha caderneta escolar me deixa feliz. Vai ser essa mamata por mais vinte e nove dias, de pura estrepolia. Fora a preocupação com a escola vou ficar livre do pessoal da TFP - Tradição Família e Propriedade que, depois que participei de uma reunião, não me deixaram mais me paz. Uma tortura! Tomara que me esqueçam!
Somos quatro irmãos: dois mais novos, a irmã mais velha e um dando chutes na barriga da minha mãe, segundo uma conversa que flagrei entre ela e nossa vizinha. Em casa nunca tocaram nesse tipo de assunto, mas fiquei sabendo quando peguei um livro no guarda-roupas da minha mãe - "Nossa Vida Sexual". Interessantíssimo, pois vi uma mulher nua, porém jamais poderia imaginar que alguém tivesse cabelo entre as pernas. Parece uma barba enorme e enrolada. Lembrei-me do pirata Barba Negra de um livro que vi na biblioteca. Será que a Jane Mansfield tem essa cabeleira toda? Seria uma decepção. "O café está na mesa!" - minha mãe entra apressada no quarto e descobre dos cobertores meus dois irmãos menores. Um deles urinou na cama, de novo! Eu nem falo nada, porque de vez em quando até eu faço, quando esqueço de ir ao banheiro antes de dormir. Fico tão apertado que sonho que estou urinando. Aí já era! Quando acontece não deixo ninguém me ver arrumando cama. Camuflo, viro o colchão para baixo, estendo a colcha sobre o lençol. Vai secar.
Pena que não posso levar a minha bicicleta MerckSwiss. Mas por outro lado na fazenda tem a Malhadinha, uma égua mansinha que nos leva para todo lado. Minha mãe avisa para enrolarmos bem o cachecol, enfiar o gorro até abaixo das orelhas para "não virar o vento". O impacto da mudança de temperatura é brusco, mas para sair de férias não é nenhum sacrifício, mesmo sendo uma boa caminhada do sobrado na Rua de Cima, no bairro do Rosário, até a estação do trem — são quase dois quilômetros. Meus pais vão andando normalmente pelas calçadas e nós disparados na frente. Até o caçula quer nos acompanhar. Quando excedemos na velocidade minha mãe já dá o tom: "vão arrebentar o nariz assim! E se machucarem vão apanhar!". Minha irmã torce para que caiamos. Somos o inferno da vida dela em casa, principalmente quando entramos no seu quarto para vermos se ela trouxe alguma coisa de interessante.
Mal a minha mãe acaba de falar; olha lá o moleque caçula estatelado no chão. Esfolou os joelhos e cotovelos nas pedras irregulares da calçada e o galo cantou com a pancada da testa. Caiu, esfolou, mas não chorou. Emburrado, com as sobrancelhas franzidas, apenas levanta e ficava olhando com cara de bravo, esperando que um dos irmãos esboce qualquer sorriso. Se percebesse alguém achando graça,ele caminhava para cima do engraçadinho, para usar as armas que tinha - unhas e chute na canela. Não consigo me conter. Seguro a risada com a mão na boca, mas ao vê-lo com aquela cara de mau e todo arrebentado, a gargalhada sai disparada. "Foi você que mandou eu cair!" É o argumento dele. Uns puxões de orelhas em cada um e a caminhada prossegue. Logo após a descida do Largo do Rosário, passamos sobre a Ponte Seca. As luzes quase esmaecidas dos postes projetam as sombras que mais parecem fantasmas nos perseguindo, ora no chão, ora nas paredes e nos muros.
A a garoa cortante engana as voltas do cachecol, entra, pela blusa, gela as orelhas, as costelas. Mais adiante descortina a igreja do Pilar no meio da neblina, mais densa ainda. Ela parece guardar a rua com sua imponência. Eu não consigo entender porque as pessoas projetam uma igreja tão importante escondendo a fachada principal atrás de algumas casas. Só depois de velho irei saber que que a frente original era no lado de trás da Igreja; mudaram não sei porquê. Escuto barulho de passos. Já não vamos mais à frente dos nossos pais. E se for o fantasma da Maria Pé de Chinelo? Mas é apenas o sacristão abrindo a porta lateral enquanto o relógio do museu toca seis badaladas. Vestido de preto ele parece um corvo. Está nos olhando de soslaio. Meu pai o cumprimenta e ele apenas acena a cabeça, notoriamente, sem a mínima vontade de falar. Hoje fico pensando que aquela criatura estava há tanto tempo fazendo a mesma coisa, que já tinha se aborrecido de escutar só "Deus que lhe pague!" ou "bom dia". Mas acho que em certo ponro ele está certo, porque a gente faz a conta e Deus é que tem que pagar.
A rua da estação é extensa. Mal viramos a esquina e vejo a porta da delegacia aberta. Tem um soldado debruçado sobre a mesa dormindo feito um urso hibernado. Que rua longa! Para nós que somos pequenos dá a impressão que ela é muito extensa. Da Igreja do Pilar até entramos na estação o vento faz questão de ajudar a garoa nos atormentar mais ainda. Na metade da extensão tem um casarão enorme, parecendo um palacete. É do pai da amiga de minha irmã, um industrial milionário de Ouro Preto, dono da imensa fábrica que vai da casa dele até à estação. Como é que uma pessoa pode dar conta de construir uma casa deste tamanho?
Enfim, a estação. Enquanto meu pai vai ao guichê comprar os bilhetes, esperamos. Entramos para plataforma de espera, onde existem alguns bancos - sentei em um deles - estão gelados. As pessoas vestem pesados casacos e ficam encolhidas. Alguns fumam e tossem. Brincamos de bafejar o ar para ver a condensação gás carbônico que sai dos nossos pulmões. Acho engraçado todos conversando e a fumaça saindo pela boca.
O chefe da estação bate o sino freneticamente. O trem vai chegar em poucos minutos. O barulho aumenta e lá está ela, a Maria Fumaça, soltando grossas baforadas que mais parecem rolos de neve embolando céu acima e se misturando com a neblina. Vai parando lentamente. A locomotiva fumega por todos os lados. Ao frear faz riçar as rodas de toda composição sobre os trilhos. Pára e solta um suspiro de fumaça branca que invade a plataforma. Acho aquilo bonito enquanto as fagulhas em brasa são cuspidas sobre o trilhos. O chefe da estação grita: "Senhores passageiros com destino à — Rodrigo Silva, Topázios, Tripuí, Hargreaves e adjacências, favor embarcar e tomar os seus lugares.
Sentamos. Um fedor horroroso está impregnado no vagão no qual viajaremos. Alguém vomitou e a catinga azeda espalhou-se e faz com que minha mãe tenha ânsias de vômito. Nós, os irmãos, seria apenas uma questão de tempo para colocarmos nossos bofes para fora, dependurados nas janelas e mareados pelo balanço do trem. "O chefe arrumou lugares no vagão de primeira"; fomos todos para lá. Mais confortável e não fede. Soa o apito, escutamos o barulho progressivo dos engates da composição. A Maria Fumaça faz força, bufa e logo ganhamos velocidade. Gosto de andar de trem, ver as coisas passarem e ansioso pela entrada no túnel. "Tirem a cabeça para dentro, fechem as janelas" - avisava meu pai. Só fui entender isso quando em uma outra viagem mais adiante não fechei. A fumaça lançada dentro do túnel invadiu janela adentro e pretejou tudo. Vamos no lenga-lenga do trem que bufa ainda mais na subida e eu fico repetindo, tentando sincronizar em coro - "Café com pão, manteiga não". Paramos em Rodrigo Silva. Meu pai desce e o vejo encontrar dois homens. Um é o magrelo Seu Zé da Paz e o outro o espanhol de apelido Espinha. Deve vir de Espiñosa, deduzo atualmente. Meu pai vai ao guichê, compra os bilhetes para eles e os dois homens embarcam no vagão fedorento. Logo o trem se põe em movimento. Pessoas desceram, pessoas subiram e me pergunto? Porque as pessoas tem que ficar indo e vindo. Não poderiam ficar paradas? Mas assim como nós estávamos indo, elas também. Dedução idiota.
O balanço lateral do trem é terrível. Se olharmos para longe na paisagem não sentimos tanto, mas se olharmos para frente, dentro do vagão, podemos perceber que através do vidro da porta entre as composições o vagão da frente e o de trás tem um deslocamento lateral enorme. O leite tomado no café da manhã sobe até a graganta várias vezes. Seguro, engulo com ardume que até fecho os olhos. Não foi desta vez, mas fico pensando — da próxima eu debruçarei na janela. Previsão que não demora nada. Debruçado, meu pai segura a minha perna e coloco o estômago do avesso. Sento na cadeira prostrado. Devo estar verde e meu irmão chora no assento de trás. O vômito entrou pela janela onde ele estava. O menino está todo sujo, chorando, com minha mãe passando lenço no rosto dele. Ela limpa e faz careta. "Éca!" - reclama. "Toda vez é essa porcariada!".
Enquanto o trem entra na última curva da nossa viagem, da janela posso ver a estação de Hargreaves. Tem pessoas esperando. De onde vieram?Nem casa perto tem. Fico indignado. Para onde vão? Se eu pudesse queria perguntar-lhes. O trem vai parando lentamente e vou observando aquelas pessoas na plataforma. Um menino da minha idade! Será o que ele estuda igual a mim? Um senhor me acena. Será que me conhece? Eu nunca o vi! Desembarcamos. Temos que aguardar o trem passar para atravessarmos a linha. Minha mãe senta e meu pai busca água. Mal deu o primeiro gole e foi a vez dela vomitar no chão da plataforma. Então é normal! Não são apenas meninos que vomitam. O chefe da estação bateu o sino e falou o nome das outras cidades para onde o trem ia levar aquelas pessoas. Chamou-me atenção para um homem despedindo-se de uma mulher. Nossa! Beijaram! Nunca havia visto um beijo na boca. Só nas revistas. Ela ficou chorando e olhando o trem sair lentamente. Porque ela chora? Será que ele voltará? Mas se ela está chorando é porque não vai voltar. Coitada!
Atravessamos a linha e pegamos a trilha para a fazenda. Olho para trás. A sineta da estação ecoa. O chefe grita os destinos de outros lugares os quais nunca fui. Os passageiros embarcam. A Maria fumaça começa a sua cadência lenta e pega velocidade. "Café com pão, manteiga não."
Comments